Por: Nilton Tristão
Friedrich Nietzsche advertiu: “Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo também olha para você.” O fenômeno bolsonarista simboliza tal fossa, concreta arquitetura emocional conectada à instabilidade cerebral de milhões de brasileiros, com a percepção operada pela erosão da empatia, regressão à consciência primitiva, além da dissolução dos critérios racionais. Esses elementos descrevem processos mentais que fantasiam a busca pela reinterpretação histórica, além da ressignificância das dinâmicas governativas e sociais.

Portanto, baseado em pesquisa qualitativa na modalidade com roteiros em profundidade, realizada no mês de novembro em todo o Estado de São Paulo pela empresa Opinião Pesquisa & GovNet, concluímos que o bolsonarismo não se alicerça apenas pela adesão aos credos conservadores, mas por regime sensorial que converte medo em moralidade, raiva em patriotismo, desprezo em superioridade identitária e angústia em desígnio espiritual. Trata-se de engrenagem que, nas palavras do ex-presidente, serve para “proteger (…) as maiorias”, uma vez que as minorias precisam se adequar a normalidade difusa.
Esse discurso torna as perversidades em combustível catalizador, e na ausência de mediação congruente, faz da dicotomia afeto/ódio sua trincheira sensitiva. Nessa conduta militante, expressada enquanto partido digital informal, Jair Bolsonaro cumpre a função metafórica da unção divina, anímica e purificadora. O “mito”, aos adeptos, representa o arquétipo de mentor messiânico, espelho das convicções e reflexo da imagem do templário sacralizado. Destarte, usar a espada em defesa do ex-presidente significa servir à missão redentora do agrupamento.
Qualquer objeção ao patriarca transforma-se em agressão interpessoal, e as instituições de Estado, tais como STF, imprensa e universidades, aparecem vaticinadas como forças persecutórias e hostis. O resultado remete ao “fechamento cognitivo”, no qual os divergentes fortalecem a credulidade doutrinária, à medida que equivalem a agentes do vilipêndio contra a essência da cristandade.
Essa dinâmica encontra consentimento social e respaldo, principalmente quando analisada sob a ótica do efeito Dunning–Kruger, ou seja, momento em que a superestimação da própria faculdade de compreender o mundo e recusa em assimilar as teses corroboradas cientificamente ganham a predominância do espírito tribal. Aliás, soma-se a isso a tendência de confrontar todo julgamento em ataque, e obtém-se a configuração intelectiva impermeável ao diálogo, que subverte a razoabilidade do nexo causal. Ao invés de procurar verificação para confirmar a exatidão dos fatos, busca-se, no repertório particular, líder ou grupo, a clarividência e narrativa apta a refutar a realidade manifesta.
Nesse sentido, a suma relevância revelada pelos dados localiza-se na condição típica de burnout coletivo. Enquanto a parcela que referenda o convívio civilizatório experimenta a vida segundo fonte de energia, propósito e identidade, com predominância de gatilhos hormonais de ocitocina, dopamina e serotonina, catalizadores dos sentimentos de pertencimento, empatia e igualdade, os bolsonaristas são mobilizados pelos efeitos psicossociais da adrenalina, cortisol e noradrenalina, que mantêm o indivíduo em situação de vigilância, ansiedade, fobia e repulsa em estado contínuo de beligerância.
Em outros termos, o país deixou de debater projetos estruturantes para disputar experiências subjetivas de ameaça comunista e salvação transcendental. O bolsonarismo tornou-se abdução psíquica, não somente eleitoral. Entre os devotos, predomina a sensação de evangelização e destino do livramento. Entre os críticos, os sintomas caracterizam a fadiga, perplexidade e retração. Em ambos os casos, rompe-se o tecido da convivência embasada na cidadania inclusiva e receptiva.
Essa fratura tangível, exterioriza-se em rupturas familiares, amizades destruídas e ambientes comunitários desgastados. A disrupção ocupa o lugar antes reservado a vínculos afetivos e religiosos, convertendo o dissenso em blasfêmia. O Brasil tornou-se emocionalmente binário, sendo que nenhum país garante futuro estável nesse regime de emoções antagônicas, validado na negação do diferente.
O risco maior, portanto, está no campo emancipador. Quando sociedade normaliza a agressividade, perseguição imaginária e idolatria ressentida, impede-se a capacidade de produzir consensos mínimos. O desafio brasileiro é duplo: primeiro, reedificar a esfera pública e os espaços privados como ambientes de pertencimento e concórdia; segundo, resgatar o valor da premissa axiomática, debate racional e interlocuções democráticas. Nenhum movimento substituirá a complexidade nacional pela guerra dogmática permanente sem comprometer os princípios preconizados por Tocqueville.
Felipe Soutello, 54 anos, consultor e estrategista político.
Nilton Tristão, 58 anos, cientista político e pesquisador do Instituto Opinião & GovNet.




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