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João Paulo Cunha Opinião

O que a vitória do Mamdani ensina ao PT: é preciso recuperar a utopia

Mais da metade da população brasileira viveu a maior parte de suas vidas na égide de governos do Partido dos Trabalhadores. Basta fazer as contas com os números do IBGE. O PT chegou pela primeira vez ao poder, no âmbito federal, há cerca de um quarto de século. Quase 60 milhões de brasileiros nasceram após a primeira vez que Luiz Inácio Lula da Silva subiu a rampa do Palácio do Planalto em Brasília. Se fizermos uma idade mediana da sociedade, concluiremos que metade tem menos de 35 anos. É mais de uma geração nascida ou criada sob o cuidado de gestões petistas.

São pessoas que vivenciaram uma revolução positiva no Brasil em muitos fatores que envolvem suas trajetórias. As taxas de pobreza e miséria caíram dramaticamente – o que por si só justificaria a passagem do partido pelo poder. Mas também a renda e o consumo subiram como nunca. Os índices de educação e saúde tiveram melhorias notáveis. Pela primeira vez, os filhos das famílias mais pobres foram efetivamente para as universidades. E nosso país se tornou potência tanto em energia limpa quanto na produção de alimentos, fatores essenciais para o exercício da soberania. A democracia, apesar de todos os ataques, foi plenamente consolidada. E mais: o Brasil recuperou papel relevante no mundo e a própria biografia de Lula despertou um sentimento altivo de autoestima nos mais pobres.

Por óbvio, há muitas dificuldades que precisam ser superadas. As desigualdades de raça, gênero e regionais persistem. A criminalidade resiste ao Estado numa luta transnacional feroz. A desindustrialização e a inevitável revolução tecnológica seguem afetando a classe trabalhadora tradicional e atrasando o desenvolvimento do país. Os juros altos travam o crescimento e envergonham o Brasil perante o mundo. Mas quando observamos a trajetória do Brasil, a afirmação de que avançamos bastante ao longo desse período se torna incontestável – e negá-la é até desonestidade intelectual. 

Porém, é preciso admitir, algo ficou pelo caminho. Comemora-se números, dados, mas a utopia que empurrou milhões de brasileiros na direção do PT e da esquerda obnubilou-se. Parece também que nossos objetivos são só defensivos, como lutar contra grupos fascistas que buscam tomar o Estado, rebater mentiras de redes sociais, ou administrar os recursos de maneira a respeitar as restrições orçamentárias, muitas vezes impostas por quem não se interessa por um país mais justo. Claro, resistência e defesa são importantíssimas, mas a ação é para frente.

Para além dessas lutas diárias, é preciso recuperar o ideal de sonhos. Trazer de volta as paixões, trazer de volta a alma que guiou o partido desde os primórdios. Governar um país é muito mais do que administrar uma corporação. Tem a ver com conduzir mentes e corações para um projeto maior de nação. Colocar como horizonte valores como justiça, fraternidade e igualdade.

Em um provável quarto mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, temos que trazer novamente os projetos que podem levar o Brasil a ser menos desigual, mais democrático e justo. Sonhos que podem ser sonhados juntos e que não se percam nas batalhas diárias e mundanas. A vitória de um imigrante, socialista e jovem (34 anos), Zohran Mamdani, para governar Nova Iorque, cidade símbolo do capitalismo mundial, é um recado. Vale a pena apostar nos ideais.

Para sair do curto-prazo que acinzenta o ambiente, o PT vai precisar estabelecer sua agenda. De imediato, auxiliar o governo a recuperar a força do Estado, de maneira a trazer a justiça tributária, reduzir as desigualdades, ou ter poder para coordenar as obras de infraestrutura que ainda precisamos. A estratégia exige, sem dúvida, retomar o controle do orçamento, hoje pulverizado pelos microinteresses regionais dos parlamentares. Necessário também repensar o papel do Judiciário, que ocupou o vácuo deixado tanto pelo Executivo quanto pelo Legislativo, e parece determinado, muitas vezes, a indicar os rumos mais transcendentes do país. Consolidar seu papel (do Brasil) na nova geopolítica mundial e apresentar um programa de longo prazo que vise mudar o Brasil estruturalmente. Por outro lado, o Partido vai precisar se reorganizar, atualizar-se e tornar sua utopia numa linguagem contemporânea.

Quem foi forjado(a) na militância por um país mais digno, como tantos do PT, não se contenta com celebrações pequenas de avanços econômicos e de vitórias táticas na política, nem da demonstrada e provada competência administrativa. Por mais importante que seja, isso ainda é insuficiente. É preciso mostrar aos brasileiros que o PT e Lula têm um projeto de nação sólido, inclusivo, próspero – para esta e as próximas gerações. O imediatismo turva o rumo e nos leva para uma batalha de superficialidade, ao gosto dos adversários. Voltemos, pois, à essência que, ao cabo, é o que temos de melhor, de mais genuíno. Voltemos àquilo que um dia fez brilhar não só os nossos, mas os olhos de todos os brasileiros.

João Paulo Cunha 

Advogado, mestre em Direito Constitucional. Ex-presidente da Câmara dos Deputados e da Comissão da Constituição de Justiça. Parlamentar por sete mandatos pelo Partido dos Trabalhadores

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